O segundo dia do seminário Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero: Teoria e Prática, nesta terça-feira (7), abordou o tema sob diferentes prismas, desde o contexto constitucional até as peculiaridades da Justiça do Trabalho e Militar.
O evento, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), reuniu especialistas em dois dias de debates sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O encerramento foi feito pelo ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto.
O jurista abordou a questão do ponto de vista da Constituição, “a lei das leis e riquíssima em princípios”. Ele comentou que os 35 anos da Carta Magna, a serem completados em 2023, são pouco tempo para modificar realidades cristalizadas ao longo de séculos, como a desigualdade de gênero.
Defeitos que vêm da história colonial
“Nós, brasileiros, padecemos de gravíssimos defeitos de nossa formação colonial”, afirmou Ayres Britto ao citar o processo secular de escravidão e o machismo estrutural presente na sociedade.
“As coisas não acontecem em um estalar dos dedos. A nossa Constituição é riquíssima em princípios e demanda mais tempo para interpretar cada um deles”, avaliou o ministro. Ayres Britto destacou diversas vezes em sua fala que a democracia é o princípio dos princípios da Constituição, e serve como baliza para todas as ações tomadas para colocar em prática as suas diretrizes, entre elas a igualdade entre homens e mulheres.
O presidente da mesa de encerramento foi o ministro Rogerio Schietti Cruz, para o qual a fala de Ayres Britto remete à ideia de educação, especialmente em um processo de desconstrução de masculinidades acumuladas ao longo do tempo.
Schietti citou o jurista inglês William Blackstone para ilustrar a complexidade da questão da desigualdade de gênero ao longo dos tempos. Segundo o ministro, se não for levado em conta o contexto do século XVII, o jurista, considerado referência por seus ensinamentos, deixa de ser admirado instantaneamente quando se lê um de seus comentários sobre a mulher, que teria a sua existência legal suspensa em razão do casamento.
“Esse pensamento perpassou toda a existência humana antes e depois desse momento, e ainda hoje estamos aqui para falar de como julgar com a perspectiva de gênero”, observou o ministro.
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Pela manhã, o seminário começou com um painel presidido pela ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, abordando questões práticas sobre o julgamento com perspectiva de gênero nas Justiças Federal, Militar e dos Estados.
A presidente de mesa destacou que o protocolo foi fruto de um grande trabalho das magistradas brasileiras no sentido de aprimorar a abordagem no julgamento das pessoas, sobretudo das mulheres, que são cada vez mais vitimizadas, inclusive nas instituições das quais deveriam receber proteção.
As diversas esferas da Justiça empenhadas na aplicação do protocolo
A juíza do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Adriana Alves dos Santos Cruz debateu o tema no âmbito da esfera penal, que, segundo ela, “talvez seja aquela em que as desigualdades do sistema de Justiça se tornam mais evidentes”. Conforme enfatizou, é na área penal que mais facilmente se enxerga “como essas assimetrias se apresentam”.
Ao ressaltar a importância de ser falar em perspectiva de gênero atrelada à questão racial, a magistrada explicou que o direito penal é um sistema de controle que atua com especial vigor para um determinado grupo da população.
A juíza do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) Cintia Brunetta destacou a perspectiva de gênero no microssistema dos juizados especiais federais. Segundo ressaltou, “quando a gente fala em ##juizado especial## federal, a gente fala sobre conceitos como vulnerabilidade, miserabilidade, subsistência, sobrevivência, amparo, desamparo, incapacidades, limitações”.
Ao apontar a questão do trabalho rural em regime de subsistência para concessão de benefícios, a juíza observou que é impossível falar em ##juizado especial## sem falar em audiência. “O trabalho rural tem que ser provado em audiência, e entender a função da mulher no núcleo familiar rural e sua função nesse trabalho é um dos grandes desafios na apreciação da prova”, completou.
A juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) Adriana Ramos de Melo destacou a Resolução 253 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que resultou na criação de um centro de apoio que contempla brinquedoteca, sala de amamentação e alimentação, sobretudo para mães e familiares que foram vítimas de violência policial em seu estado. Segundo ressaltou, “essa resolução precisa ainda ser mais divulgada e cobrada”.
Juíza de vara da violência doméstica, ela disse que “é na audiência que as mulheres são revitimizadas, são julgadas pelas suas roupas, comportamento, atitudes”. Para a magistrada, deve haver uma política para que a mulher não seja desqualificada em uma audiência de violência de gênero, seja ela doméstica, sexual ou a própria violência institucional.
“A mulher sofre seja como vítima ou agressora, porque nós somos julgadas por estereótipos de gênero”, ressaltou a juíza ao enfatizar a importância do protocolo no momento da audiência. “A legislação não muda cultura, já temos legislações suficientes, o que precisamos é que os juízes incorporem em sua jurisdição esses mecanismos e essas ferramentas”, concluiu.
Julgar sob a premissa da igualdade substancial
O juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) Edinaldo César Santos Junior, apontando a predominância masculina na magistratura brasileira, enfatizou a importância da participação dos juízes na aplicação do protocolo.
“As juízas e os juízes, a partir do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, terão que olhar os fatos sob uma nova perspectiva, sob um novo padrão. A partir desse olhar, julgar sob a premissa da igualdade substancial é o que nos levará a uma emancipação social”, declarou.
O magistrado ressaltou a importância de seus pares levarem em consideração, na hora de julgar, se estão enquadrados nas lentes de perspectiva de gênero, pois “agir com violência institucional é inadmissível, inaceitável e inconstitucional”.
A juíza Mariana Aquino, da Justiça Militar, comentou que não há um recorte de gênero para os crimes previstos na legislação penal militar. “Quando a mulher é vítima de um crime militar, ela é duplamente atingida, na condição de mulher e na condição de militar”, afirmou.
A magistrada lembrou que o crime militar é julgado pelos próprios militares. Assim, segundo ela, quando uma mulher sofre violência na esfera militar, ela tem de relatar o fato para uma pessoa da própria organização militar, que provavelmente será um homem. Mariana Aquino falou também sobre o Projeto de Lei 5.016/2020, que trata da mudança na composição dos conselhos da Justiça Militar com vistas à paridade de gênero nos julgamentos.
As peculiaridades das desigualdades na Justiça do Trabalho
O primeiro painel da tarde debateu o julgamento com perspectiva de gênero na Justiça do Trabalho e teve como presidente de mesa Luiz Philippe Vieira de Melo Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e conselheiro do CNJ.
A ministra do TST Maria Cristina Peduzzi afirmou que é essencial que o sistema de Justiça saiba lidar com questões de gênero de maneira adequada e justa, e nesse contexto o protocolo surge como uma importante ferramenta para garantir que as decisões judiciais levem em consideração as diferentes realidades e experiências.
“O protocolo é o reflexo da luta pela igualdade de direitos das minorias e traz orientações concretas aos magistrados para que lidem com as questões de gênero”, disse ela.
A ministra ressaltou que, no âmbito do TST, a implantação do protocolo tem sido ampla e eficiente, destacando a criação do Observatório Excelências Femininas em março de 2022 e a instituição de um grupo de trabalho em estudos de gênero, raça e equidade. “Essa movimentação do TST visa dar efetivo cumprimento ao protocolo”, concluiu.
Desigualdade entre as partes na Justiça trabalhista é histórica
A conselheira do CNJ e desembargadora Jane Granzoto Torres da Silva observou que o ramo do direito trabalhista trata de uma relação composta de partes histórica e manifestamente desiguais. “O juiz do trabalho já tem esse olhar voltado para a identificação da matéria e a identificação das partes levando em conta a hipossuficiência”, afirmou.
A desembargadora apontou que resta aos juízes do trabalho a análise dos processos com foco na perspectiva de gênero, considerado o papel da mulher perante a sociedade e em especial no mundo do trabalho.
“No tocante às questões de gênero específicas para a Justiça do Trabalho, deve-se estabelecer também, a par do enfoque na relação já historicamente desigual, um foco nas desigualdades no ingresso e na progressão na carreira, na violência e no assédio no trabalho, na segurança e na medicina do trabalho”.
A juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (TRT9) Vanessa Karam apontou que, em um ano e meio de publicação do protocolo, ele apresenta um saldo positivo, em razão da quantidade de decisões que vêm citando e utilizando suas diretrizes. “Não basta apenas citar, é preciso que ele de fato seja usado na atuação do dia a dia, não apenas da magistratura, mas de todos que participam de todas as etapas do processo”, enfatizou.
“É um pontapé inicial na transformação desses paradigmas que permeiam todo o sistema de Justiça há décadas, especialmente em matéria de gênero e raça”, observou a magistrada ao relatar que as mulheres ainda enfrentam menores salários, maior taxa de desemprego, postos mais precários, maior rotatividade e impedimento da acessão na carreira, além de menor percentual em cargos de gestão.
A juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15) Patrícia Maeda apontou a necessidade de se ter a perspectiva interseccional de gênero e raça quando se fala em trabalho. Ela exemplificou que, na Justiça do Trabalho, uma das teses a respeito da atuação judicial versa sobre a inversão do ônus da prova nos processos que tratam de assédio sexual.
Perspectiva de gênero e o contexto internacional
O último painel, que abordou a questão do ponto de vista do contexto internacional, foi presidido pela assessora da vice-presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) Aline Rezende Osório e teve como expositoras as professoras e pesquisadoras Victoriana Gonzaga, da Fundação Getulio Vargas (FGV), e Flávia Piovesan, da PUC São Paulo.
Victoriana Gonzaga chamou atenção para a necessidade de se trazer a academia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades como a Defensoria Pública para a discussão, evitando que o debate fique restrito ao âmbito dos magistrados.
Ela disse que o fato de o CNJ ter editado o protocolo é um “marco simbólico, porque reconhece a desigualdade na produção do direito”, e outro efeito desse reconhecimento é não personalizar o problema da desigualdade de gênero na conduta de um magistrado, mas identificá-lo como uma questão estrutural.
Flávia Piovesan comentou a posição do Brasil no ranking de igualdade de gênero. A professora lamentou que a 94ª posição alcançada pelo país – entre os 156 avaliados – coloca-o em situação inferior a países vizinhos ou similares, como México e Argentina, classificados em 34º e 35º lugar, respectivamente.
Tal situação é explicada, segundo a professora, por dificuldades acentuadas da mulher na participação política e no mercado de trabalho. “Os estudos estimam 135,6 anos para chegarmos a uma condição de igualdade de gênero, e um dos principais questionamentos que devemos fazer é como avançar nesse cenário”, comentou.