Entre os muitos julgamentos de destaque no campo criminal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotou, em 2002, uma série de entendimentos que contribuem para aperfeiçoar o trabalho investigativo e ressaltam a preocupação da corte com os grupos sociais mais vulneráveis, vítimas de frequentes atitudes discriminatórias por parte dos agentes do Estado.
No mês de junho, em sessão considerada histórica, os ministros da Sexta Turma exaltaram o que chamaram de uma “cruzada nacional” pela qualificação da investigação criminal. Eles analisaram casos que sintetizam o problema da realização de reconhecimentos de suspeitos sem a observância dos procedimentos previstos pela legislação, em especial o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). Em todas as situações, por falta de respeito à lei, foram anulados os procedimentos de reconhecimento, com pareceres favoráveis do Ministério Público Federal.
O ministro Rogerio Schietti Cruz alertou para o fato de que, como ocorreu em processos julgados pela Turma, os suspeitos eram pessoas negras, trazendo à tona a questão da discriminação racial também nas diligências policiais, sobretudo em comunidades pobres.
“Há um componente racial presente em quase todos esses casos”, declarou o magistrado, ressaltando que as maiores vítimas desse tipo de ação do Estado “são pessoas que moram nas periferias, pessoas que não têm, muitas vezes, a quem recorrer”.
Para o ministro Sebastião Reis Júnior, a Justiça brasileira, muitas vezes, “tem preferido procurar um culpado, e não o culpado” em cada caso. Com a simplificação de procedimentos em matéria penal, o ministro apontou que o Judiciário e o Ministério Público têm aceitado qualquer informação apresentada pela polícia.
Novos avanços no entendimento sobre o reconhecimento de pessoas
Três meses antes da sessão definida como histórica pelos próprios ministros, a Sexta Turma havia fixado avanços importantes em relação ao reconhecimento de pessoas.
Ratificando liminar deferida anteriormente, o colegiado concedeu habeas corpus (HC 712.781) para absolver um homem condenado por roubo e corrupção de menores com base apenas em reconhecimento fotográfico, realizado em desconformidade com a legislação.
O relator, Rogerio Schietti, afirmou que, mesmo quando realizado de acordo com o modelo legal – descrito no artigo 226 do CPP –, o reconhecimento pessoal, embora válido, “não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva”, exigindo provas adicionais.
Por outro lado, acrescentou, se o reconhecimento for feito em desacordo com a lei, será inválido e não poderá “lastrear juízo de certeza da autoria do crime, mesmo que de forma suplementar”, nem servir de base para a decretação de prisão preventiva, o recebimento de denúncia ou a pronúncia do réu.
Ilegalidade em revista pessoal baseada em “atitude suspeita”
Em abril, a Sexta Turma considerou ilegal a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial, motivada apenas pela impressão subjetiva da polícia sobre a aparência ou atitude suspeita do indivíduo. O colegiado concedeu habeas corpus (RHC 158.580) para trancar ação penal contra um réu acusado de tráfico de drogas. Os policiais que o abordaram, e que disseram ter encontrado drogas na revista pessoal, afirmaram que ele estava em “atitude suspeita”, sem apresentar nenhuma outra justificativa para o procedimento.
Por unanimidade, os ministros consideraram que, para a realização de busca pessoal – conhecida popularmente como “baculejo”, “enquadro” ou “geral” –, é necessário que a fundada suspeita a que se refere o artigo 244 do CPP seja descrita de modo objetivo e justificada por indícios de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou outros objetos ilícitos, evidenciando-se a urgência para a diligência.
De acordo com o ministro Schietti, relator do caso, a suspeita assim justificada deve se relacionar, necessariamente, à probabilidade de posse de objetos ilícitos, pois a busca pessoal tem uma finalidade legal de produção de provas. De outro modo, seria dado aos agentes de segurança um “salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias baseadas em ##suspeição## genérica”, sem relação específica com a posse de itens ilícitos.
Condenação de réu com absolvição pedida pelo MP
Para a Quinta Turma, caso o Ministério Público – titular da ação penal – tenha pedido a absolvição do réu, como regra, não cabe ao juiz condená-lo, sob pena de violação do princípio acusatório e da separação entre as funções de acusar e julgar. No julgamento do AREsp 1.940.726, o colegiado entendeu que, para se contrapor à posição do MP, a sentença condenatória deve ser fundamentada de forma especialmente robusta, com a indicação de provas capazes de sustentar essa situação excepcional.
Com esse entendimento, fixado por maioria de votos, a turma concedeu habeas corpus de ofício para anular a sentença condenatória em relação a um réu acusado de crime tributário (o corréu também teve a condenação revertida, mas por outras razões). No processo, o Ministério Público Federal (MPF) pediu a absolvição de um dos acusados com base em depoimento da testemunha de defesa – a mesma prova utilizada pelo juiz para decidir pela condenação.
“A acusação não é atividade que se encerra com o oferecimento da denúncia, já que a atividade persecutória persiste até o término da ação penal. Assim, considero que, quando o Ministério Público requer a absolvição do réu, ele está, de forma indireta, retirando a acusação, sem a qual o juiz não pode promover decreto condenatório, sob pena de acusar e julgar simultaneamente”, afirmou o ministro João Otávio de Noronha no voto que prevaleceu no colegiado.
Vedação de atuação da guarda municipal como força policial
Em agosto, a Sexta Turma reforçou o entendimento de que a guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos pela Constituição Federal, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. Para o colegiado, a sua atuação deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município (REsp 1.977.119).
O colegiado também considerou que só em situações absolutamente excepcionais a guarda pode realizar a abordagem de pessoas e a busca pessoal, quando a ação se mostrar diretamente relacionada à finalidade da corporação.
O relator, Rogerio Schietti, destacou a importância de se definir um entendimento da corte sobre o tema, tendo em vista o quadro atual de expansão e militarização dessas corporações. Segundo explicou, o propósito das guardas municipais vem sendo significativamente desvirtuado na prática, ao ponto de estarem se equipando com fuzis, armamento de alto poder letal, e alterando sua denominação para “polícia municipal”.
Maria da Penha: medidas protetivas urgentes e aplicação em violência contra mulher trans
Ao longo do ano, houve decisões relevantes envolvendo a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Em abril, a Sexta Turma estabeleceu, em processo protegido por segredo de justiça, que a lei se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Considerando que, para efeito de incidência da lei, mulher trans é mulher também, o colegiado deu provimento a recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família.
“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”, afirmou o ministro Schietti, relator.
Já a Quinta Turma, em novembro, no REsp 2.009.402, considerou incabível, após a decretação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, a adoção de procedimento para que o suposto ofensor tenha ciência da decisão e, caso não apresente defesa, seja decretada a sua revelia, nos moldes estabelecidos pelo Código de Processo Civil (CPC).
Por maioria de votos, o colegiado considerou que as medidas protetivas de urgência especificadas na lei possuem natureza cautelar – ou seja, são concedidas sem a manifestação da parte contrária (inaudita altera pars).
“Deve-se aplicar às medidas protetivas de urgência o regramento previsto pelo Código de Processo Penal no que tange às medidas cautelares. Dessa forma, não cabe falar em instauração de processo próprio, com citação do requerido, tampouco com a possibilidade de decretação de sua revelia em caso de não apresentação de contestação no prazo de cinco dias”, afirmou o ministro Joel Ilan Paciornik, autor do voto que prevaleceu no julgamento.
Caracterização de crimes do ECA por exposição sexual de menores
Interpretando o artigo 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Sexta Turma reafirmou, em abril, que o sentido da expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” não se restringe às imagens em que a genitália de crianças e adolescentes esteja desnuda, ou que mostrem cenas de sexo.
Segundo o colegiado, com base no princípio da proteção integral da criança e do adolescente, o alcance da expressão deve ser definido a partir da análise do contexto da conduta investigada, e é imprescindível verificar se há evidência de finalidade sexual – o que pode ocorrer sem a exposição dos genitais do menor. O número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
A relatora do recurso, ministra Laurita Vaz, destacou que a lei oferece proteção absoluta à criança e ao adolescente, e que, para identificar os delitos tipificados no ECA, é preciso analisar todo o contexto que envolve a conduta do agente.
“É imprescindível às instâncias ordinárias verificarem se, a despeito de as partes íntimas das vítimas não serem visíveis nas cenas que compõem o acervo probante (por exemplo, pelo uso de algum tipo de vestimenta) contido nos autos, estão presentes o fim sexual das imagens, poses sensuais, bem como evidência de exploração sexual, obscenidade ou pornografia”, afirmou.
Pacote Anticrime e o caráter hediondo do tráfico de drogas
Foi também no mês de abril, ao julgar o HC 729.332, que a Quinta Turma estabeleceu que as alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 – conhecida como Pacote Anticrime – na Lei 8.072/1990 não retiraram a equiparação do delito de tráfico de entorpecentes a crime hediondo. O colegiado destacou que a classificação da narcotraficância como infração penal equiparada a hedionda está prevista na própria Constituição (artigo 5º, inciso XLIII).
O entendimento foi fixado pela Turma ao negar habeas corpus que buscava o reconhecimento de que o tráfico de drogas teria perdido a sua caracterização como crime equiparado a hediondo após o início da vigência do Pacote Anticrime, que revogou o artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei 8.072/1990.
O relator, Reynaldo Soares da Fonseca, explicou que, nos termos do artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição, a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.
“O próprio constituinte assegurou que o tráfico de drogas, a tortura e o terrorismo são merecedores de tratamento penal mais severo”, complementou.
Interceptação telefônica e congelamento de dados telemáticos
Em fevereiro, no AREsp 1.360.839, a Sexta Turma firmou o entendimento de que a decisão que defere a interceptação telefônica – bem como as suas prorrogações – deve conter, obrigatoriamente, com base em elementos do caso concreto, a indicação dos requisitos legais de justa causa e da imprescindibilidade da medida para a obtenção da prova, como determina o artigo 5º da Lei 9.296/1996.
Com esse fundamento, o colegiado reconheceu a nulidade de provas reunidas em investigação sobre o comércio ilegal de armas de fogo no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
Em seu voto, o relator, Sebastião Reis Júnior, lembrou que o magistrado tem como dever constitucional (artigo 93, IX, da Constituição), sob pena de nulidade, fundamentar as decisões por ele proferidas. Para o ministro, no caso da interceptação telefônica, a fundamentação da decretação da medida deve ser casuística e não se pode pautar em fundamento genérico.
No mesmo mês, a Sexta Turma considerou válido o pedido feito pelo Ministério Público – sem autorização judicial – para que provedores de internet congelassem dados telemáticos de usuários, preservando-os para fins de investigação criminal (HC 626.983).
O colegiado negou pedido de habeas corpus em favor de uma mulher investigada na Operação Taxa Alta, que apura diversos crimes relacionados a licitações no Detran do Paraná.
Segundo o relator do caso, desembargador convocado Olindo Menezes, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) tornou mais eficiente o acesso a dados para fins de investigação criminal, ao possibilitar que o Ministério Público requeira diretamente ao provedor a sua guarda, em ambiente seguro e sigiloso, evitando o descarte dos conteúdos pelos usuários.
Admissão de revisão criminal contra decisão que restabeleceu sentença condenatória
No mês de outubro, em processo que tramitou em segredo, a Terceira Seção admitiu o ajuizamento de revisão criminal contra decisão unipessoal de relator que deu provimento a recurso especial para restabelecer sentença condenatória. Por maioria, o colegiado decidiu admitir as revisionais de decisões monocráticas, como forma de dar maior garantia aos réus em processo penal e assegurar o exercício de um direito que a lei não restringe.
Conforme o ministro João Otávio de Noronha, cujo entendimento prevaleceu na seção, há julgados no STJ que, por falta de previsão regimental específica, não enfrentaram o mérito do pedido de revisão ajuizado contra decisão singular do relator.
O magistrado explicou que esse entendimento parte de uma leitura restritiva do artigo 239 do Regimento Interno do STJ. “Em síntese, pode-se afirmar que, se um órgão do tribunal decide reiteradamente, da mesma maneira, uma questão de fato ou de direito, seus integrantes ficam autorizados a decidir, de forma isolada e prévia, os demais processos sobre o mesmo tema, que inevitavelmente teriam a mesma decisão”, afirmou.