Para refletir e dialogar sobre a questão do racismo estrutural dentro e fora do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi promovida, nesta quarta-feira (23), a roda de conversa “O racismo ##mora## em mim?”. O evento contou com a participação de especialistas, ministros e de diversos servidores, estagiários e colaboradores da instituição.
A diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e advogada internacional de direitos humanos Sheila de Carvalho, referência nos debates sobre racismo no Brasil, discorreu sobre o sistema de exploração do povo negro nos últimos 500 anos.
A especialista falou sobre a constante “invisibilização” da população negra e a necessidade de reconhecimento, responsabilização e reparação da escravidão e das atitudes racistas do Estado brasileiro desde o início da colonização.
“Quando olhamos a questão da escravidão da população negra, vemos que falhamos gigantemente enquanto sociedade. Primeiro porque há um grande desconhecimento sobre a escravidão. Há o costume de se ignorar, por exemplo, que havia uma resistência negra muito forte nos quilombos”, explicou.
Na abertura do evento, falaram a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, e o ministro Benedito Gonçalves, que atuou como presidente da comissão de juristas criada pela Câmara dos Deputados para aperfeiçoar a legislação contra o racismo. Ketlin Feitosa, assessora-chefe de Gestão Sustentável, mediou a conversa.
Todos iguais perante a lei
O ministro Benedito Gonçalves abordou a necessidade de uma luta constante contra o racismo. Para ele, o racismo precisa ser tratado nas dimensões institucional e estrutural. “Só avançaremos quando pararmos de tratar o racismo como um problema alheio”, afirmou.
O ministro Benedito Gonçalves cumprimenta a ministra Maria Thereza de Assis Moura durante o evento da campanha “O racismo ##mora## em mim?” | Foto: Lucas Pricken / STJPara o ministro, o pior racismo é o que ##mora## no cotidiano, no que se pratica e não se percebe. Segundo ele, no Brasil, duas razões agravam o problema: a primeira é que ele é velado; a segunda é que a sociedade é baseada em uma rede de privilégios. “Temos muita gente que não possui as mesmas oportunidades. Entender o racismo é perceber como o outro e como você mesmo o reproduzem sem pensar”, acrescentou.
No entender de Benedito Gonçalves, o Brasil conseguirá pagar sua dívida com a população negra quando cumprir a Constituição Federal, que preceitua uma sociedade justa, fraterna e solidária. “Em 13 de maio de 1888, a escravidão foi abolida, ali nasceu a discriminação. Precisamos lutar todos os dias contra o racismo e pela igualdade de oportunidade, pois todos são iguais perante a lei, sem distinção”, finalizou.
Reconhecer o problema para encontrar soluções
A presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, destacou a importância da reflexão e do diálogo sobre o assunto. Ela frisou que é preciso reconhecer a existência de um problema envolvendo a questão racial no Brasil para se buscarem soluções concretas.
Segundo Maria Thereza, os dados mostram a existência de um racismo estrutural visível principalmente na composição da população carcerária (64% dos presos são pretos ou pardos); nas mais de 60% das abordagens policiais dirigidas a pessoas negras, e no baixo percentual de estudantes universitários negros, que não alcança 35% em um país cuja proporção entre negros e brancos é quase de um para um.
“Esta ação representa o compromisso do STJ de, diariamente, buscar uma sociedade plural, livre e digna. E não será a única. A pauta retornará em 2023 com a reedição desta roda de conversa sobre racismo e outras ações sobre temas igualmente relevantes”, afirmou.
Equidade somente daqui a 130 anos
Ao trazer várias reflexões para o público da roda de conversa, Sheila de Carvalho também falou sobre a criação de políticas públicas para o povo negro. Ela destacou que as decisões estatais, desde a época da abolição da escravidão no Brasil, visaram excluir o povo negro e afastá-lo da condição de cidadão.
Marcondes de Araújo Silva, do Grupo Temático de Igualdade Racial; Sheila de Carvalho, do Instituto de Referência Negra Peregum, e a mediadora Ketlin Feitosa. | Foto: Lucas Pricken / STJ“Temos uma constante perpetuação do cerceamento da liberdade dos corpos negros. Essa é uma política que se vive até hoje, pois continuamos nesse cenário”, ressaltou.
Ela apontou o incentivo à imigração de populações brancas como uma política nacional de embranquecimento da sociedade brasileira e a divulgação da falácia de que, no Brasil, não existe racismo porque o povo é miscigenado. “Narrativas para mostrar que aqui estava tudo bem”, comentou.
Para a advogada internacional de direitos humanos, o racismo não é um problema só das pessoas negras, e sim de toda a sociedade. “Para que a gente possa superar o racismo, precisaremos de um engajamento da sociedade como um todo. Reconhecer o racismo como um problema que nos afeta, que é um câncer da sociedade. Só teremos uma sociedade livre dessas amarras se criarmos um sistema de colaboração”, disse.
A especialista apresentou um dado impactante divulgado pelo Banco Mundial em 2018 – ano em que a abolição da escravatura completou 130 anos: no ritmo que o Brasil está, só poderá conseguir uma equidade de gênero e raça dentro de mais 130 anos. “É luta para uma vida inteira, para geração após geração”, afirmou.
Ao responder a perguntas do público, Sheila de Carvalho acrescentou que a luta antirracismo é dever de todos, brancos e negros. Segundo ela, é preciso romper o processo histórico da falsa abolição que sustenta as desigualdades brasileiras até hoje.
Racismo silencioso, consequências desastrosas
O servidor do STJ Marcondes de Araújo Silva – que faz parte do Grupo Temático de Igualdade Racial do programa Humaniza STJ – debateu a naturalização do racismo no Brasil. “No nosso país, o racismo é cultural, silencioso e naturalizado, e as consequências disso são desastrosas”, declarou.
Para ele, a estrutura do racismo impede a ascensão das pessoas negras, principalmente nos campos político e econômico. “Queremos ter o direito de exercer os nossos direitos. Não é uma luta de um contra o outro, mas uma luta de todos nós”, salientou.
“Ainda em 2022, em determinados espaços, vemos negros em funções específicas. Não é por falta de capacidade, mas porque culturalmente somos alijados do processo”, disse.
Marcondes Silva também discorreu sobre a legislação antirracista existente no Brasil. Ele afirmou que, apesar das leis, condutas racistas silenciosas são práticas constantes no comércio, no interior das empresas e na sociedade em geral.
Por fim, ressaltou a possibilidade de o STJ ser vanguardista no combate ao racismo, exercendo efetivamente o seu papel de Tribunal da Cidadania para mostrar políticas implementadas e novas propostas para combater e refletir sobre o racismo estrutural.
Campanha de conscientização interna
Durante a roda de conversa, a Secretaria de Comunicação Social do STJ apresentou a campanha de conscientização “O racismo ##mora## em mim?”. Os vídeos foram produzidos a partir de depoimentos reais coletados pela equipe de comunicação, com o apoio do Grupo Temático de Igualdade Racial do Humaniza STJ, para estimular a reflexão a respeito do racismo estrutural.
Confira aqui os vídeos produzidos pela Coordenadoria de TV e Rádio, que simulam histórias reais interpretadas por atores voluntários convidados (Carlos Neves, Cecília Langamer, Ellen Gonsioroski e Igor Nascimento).
A iniciativa visou conscientizar servidores, colaboradores e estagiários do STJ sobre o racismo estrutural – preconceito que permeia os ambientes político, econômico e social, reproduzido, muitas vezes, de forma inconsciente.