No processo judicial, um dos aspectos mais importantes para a garantia de decisões corretas e justas é a atuação de um magistrado isento, que não tenha relação questionável com as partes nem qualquer interesse na causa e que possa analisar o litígio com o distanciamento necessário.
Para a preservação dessa garantia, o ordenamento jurídico brasileiro prevê os mecanismos da suspeição e do impedimento. Enquanto o impedimento é regulado pelo artigo 144 do Código de Processo Civil (CPC), a suspeição é disciplinada pelo artigo 145 e tem contornos mais subjetivos.
Tanto as situações de suspeição como as de impedimento são frequentemente analisadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Esta é a primeira de duas matérias especiais sobre a interpretação do STJ em casos nos quais foram discutidos a suspeição e o impedimento de magistrados.
O instituto da suspeição abrange as hipóteses em que o magistrado fica impossibilitado de exercer sua função no processo devido a vínculo subjetivo (relacionamento) com algumas das partes, fato que poderia comprometer seu dever de imparcialidade.
Por exemplo, considera-se suspeito, entre outras situações, o juiz que tem relação próxima com pessoa que participa do processo sob sua jurisdição, seja por amizade ou inimizade; que a aconselhou ou que é seu credor ou devedor.
As hipóteses de suspeição também estão previstas no artigo 254 do Código de Processo Penal.
Autodeclaração de suspeição não tem efeitos retroativos
Quando o juiz se declara suspeito em razão de algum motivo superveniente, isso não compromete a validade dos atos praticados anteriormente ao fato que gerou a suspeição, pois, em tais circunstâncias, não há efeitos retroativos.
Esse entendimento foi confirmado pela Primeira Seção ao indeferir o pedido de anulação dos atos processuais anteriores praticados pelo ministro relator de um recurso repetitivo (PET no REsp 1.339.313).
Segundo a ministra Assusete Magalhães, autora do voto que prevaleceu no julgamento do pedido de anulação, a autodeclaração de suspeição foi feita pelo relator originário quase dois anos após o julgamento do recurso, por motivo superveniente – momento em que o processo estava na vice-presidência para análise da admissibilidade de recurso extraordinário.
Citando precedentes da corte (AgRg no AREsp 763.510 e RHC 43.787), a ministra destacou que a suspeição por situação superveniente não opera retroativamente, não implicando, por si só, a nulidade dos atos processuais anteriores a esse fato.
Suspeição não pode ser alegada contra instituição
Em decisão unânime, a Terceira Turma negou provimento ao recurso especial interposto por uma mulher que pretendia que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) fosse, em sua totalidade, declarado suspeito para julgar um processo.
O REsp 1.469.827 decorreu de uma ação reivindicatória de propriedade movida pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra os ocupantes da área conhecida como Vila Domitila, em Curitiba.
De acordo com a mulher, que era uma das rés na ação, foram afixadas placas nas quadras da Vila Domitila com os dizeres: “Área de interesse da Justiça Federal”. Segundo ela, isso comprovaria o interesse do TRF4 no julgamento da causa em favor do INSS.
O TRF4 não acolheu a exceção de suspeição. Segundo o acórdão, além de não ser possível o reconhecimento de suspeição em relação à figura do juízo como um todo, a alegação de interesse da Justiça Federal seria infundada.
No STJ, a relatora, ministra Nancy Andrighi, manteve a decisão. Segundo ela, o reconhecimento da suspeição exige que fique evidenciada uma prévia parcialidade do julgador para decidir o processo, o que não foi demonstrado no caso.
De acordo com a ministra, além da exceção de suspeição não ser cabível contra uma instituição, “a alegação de parcialidade, na realidade, constitui mera conjectura, destituída de qualquer elemento objetivo de prova, pois não há nenhuma evidência de que a atividade jurisdicional restou comprometida pelos fatos narrados pela recorrente”.
Juizrntem legitimidade para recorrer de decisão que o declara suspeito
O magistrado, apesar de não ser parte na ação submetida à sua jurisdição, é parte no incidente de suspeição que possa surgir no processo – situação em que poderá defender interesses próprios.
Com esse entendimento, manifestado no julgamento do REsp 1.237.996, a Quarta Turma cassou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que não conheceu dos embargos de declaração apresentados por um magistrado contra a decisão que o afastou de um processo.
O ministro Marco Buzzi, relator do recurso especial do juiz, explicou que, com base nos princípios tradicionais que regem o direito processual, o magistrado, os auxiliares da Justiça e os demais sujeitos imparciais do processo não são parte nem terceiros nas ações que tramitam sob sua jurisdição ou supervisão. Por esse motivo, em tese, não estariam legitimados a interpor recursos.
Entretanto – ponderou –, existem deliberações judiciais que podem afetar diretamente o patrimônio financeiro desses sujeitos, a exemplo do julgamento procedente de exceção de suspeição ou impedimento, em que o juiz é condenado a pagar despesas processuais.
Por essas razões, atualmente, segundo o relator, há uma tendência de distanciamento da concepção clássica da chamada “parte”, pois os titulares da relação jurídica material submetida ao Judiciário não se confundem, necessariamente, com os sujeitos da relação jurídica processual.
No caso da exceção de suspeição, Buzzi apontou que o juiz excepto, embora não seja parte na relação jurídica material da demanda, figura como parte legítima no incidente, tanto que, caso não reconheça a sua suspeição, pode apresentar defesa.
Segundo o ministro, o CPC/2015, no artigo 146, parágrafo 5º, afastou qualquer dúvida sobre a possibilidade de o juiz interpor recurso contra a decisão que julga a exceção procedente.
Para o ministro, o juiz tem legitimidade para impugnar, por meio de recurso, a decisão que julga procedente a exceção de suspeição, ainda que ele não seja condenado ao pagamento de custas ou honorários advocatícios, pois também pode haver reflexos em seu patrimônio moral.
Erro em publicação não configura suspeição
Para a Segunda Seção, a publicação equivocada do resultado de um julgamento, antes de sua realização, não leva à conclusão de que o relator seja suspeito. O entendimento foi firmado na análise da Exceção de Suspeição 198. O colegiado concluiu que o caso poderia revelar a ocorrência de uma falha procedimental, que eventualmente resultaria na cassação do acórdão, mas esse objetivo não poderia ser buscado pela via da exceção de suspeição.
De acordo com a seção de direito privado, as hipóteses de suspeição do magistrado previstas no artigo 145 do CPC/2015 devem ser interpretadas de forma restritiva. Entre essas hipóteses legais, estão a existência de relação de amizade íntima ou inimizade com qualquer das partes ou seus advogados, o recebimento de presentes de pessoas com interesse na causa e o fato de uma das partes ser credora ou devedora do magistrado.
No incidente, uma empresa apontou que o resultado do julgamento de seu ##agravo## interno na Terceira Turma foi publicado, embora o feito tivesse sido adiado para a sessão virtual posterior, o que revelaria parcialidade na condução do processo. A suspeição, segundo a empresa, deveria ser estendida aos demais ministros daquele colegiado, pois o resultado publicado antecipadamente expressaria a posição de todos eles.
O ministro Villas Bôas Cueva, relator, refutou a suspeição e determinou a autuação do incidente em separado, tendo sido distribuído na Segunda Seção ao ministro Marco Aurélio Bellizze.
Segundo Bellizze, a exceção de suspeição – que não apontou nenhuma das hipóteses legais previstas no CPC – estaria sendo usada pela parte como sucedâneo recursal, o que é manifestamente inviável diante da falta de respaldo legal.
“É relevante ressaltar que as hipóteses taxativas de cabimento da exceção devem ser interpretadas de forma restritiva, sob pena de comprometimento da independência funcional assegurada ao magistrado no desempenho de suas funções”, concluiu.
Suspeição por motivo de foro íntimo não pode ser questionada
É ilegal e abusiva a intervenção do conselho de magistratura de um tribunal ao invalidar a manifestação do julgador que se declarou suspeito por motivo de foro íntimo, uma vez que essa declaração é dotada de imunidade constitucional e, por isso, é ressalvada de censura ou de crítica da instância superior.
Para o ministro Raul Araújo, relator do RMS 33.531, a declaração de suspeição por motivo de foro íntimo se relaciona com os predicamentos da magistratura (artigo 95 da Constituição Federal), que funcionam como asseguradores de um juiz independente e imparcial, o que é inerente ao devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF).
A decisão foi dada pela Quarta Turma. Em ação de indenização por dano moral, o juiz de direito afirmou suspeição por motivo de foro íntimo, com base no artigo 135, parágrafo único, do CPC, e comunicou sua decisão por ofício ao conselho da magistratura de seu tribunal.
Entretanto, o conselho, em votação unânime, “não conheceu” da suspeição, devolvendo os autos da ação ordinária ao juiz, o qual, prosseguindo no feito, designou audiência de conciliação.
O réu na ação de indenização contestou a decisão do conselho em mandado de segurança e, não obtendo êxito no tribunal local, recorreu ao STJ, alegando ter sido violado seu direito líquido e certo relacionado ao devido processo legal, que garante às partes um julgador isento, imparcial e independente.
Para Raul Araújo, a decisão do conselho da magistratura constrangeu o juiz, subtraindo-lhe a independência, ao obrigá-lo a conduzir processo para o qual não se considerava apto, por razões de foro íntimo – as quais não tinha que declinar, mas certamente comprometiam a indispensável imparcialidade.